Não beber nas próximas 24 horas

Quis o destino que as vidas de Carlos e Custódio um dia se unissem. São companheiros de uma longa caminhada que se conta de 24 em 24 horas. A luta para não beber hoje o primeiro copo de vinho é o fio da navalha que os une...
Fotos: arquidiocesedebrasilia.org.br e

www1.prefpoa.com.br


"Eu não sou alcoólico, nem sou um bêbado, simplesmente gosto de beber". Esta é a frase tantas vezes repetida por quem não assume que é alcoólico e que esta é uma doença sem cura. Mata, destrói a vida de quem bebe e de quem está à sua volta. Mas o vício é mais forte que qualquer vontade de dizer não ao copo que se enche, vezes sem conta, daquele líquido que faz mal, mas sabe tão bem.
Os anos, inevitavelmente, vão passando e são dados como perdidos. O tempo passado com sobriedade é cada vez menos e o destino é o "fundo do poço".
Carlos e Custódio hoje conseguem falar das suas vidas abertamente, porque um dia tiveram a coragem de dizer basta a um copo de vinho. Encontraram uma porta aberta nos Alcoólicos Anônimos (AA), onde entraram por vontade própria com a convicção de que o copo que beberam foi o último das últimas 24 horas. Não é fácil para um homem com 45 anos falar dos piores anos da sua vida e assumir que durante esse período viveu em função da bebida, onde tudo era um esquema, uma manobra para beber só mais um copinho. "Sim fui alcoólico. Toda a minha vida girava em torno do álcool". Mas até entrar em recuperação, para o Carlos, alcoólicos eram os outros, "eu não... Ai daquele que me chamasse bêbado".
O seu percurso no mundo do álcool, recorda, começou aos 15, 16 anos, quando bebia uma imperial com os amigos. No entanto, havia uma diferença. Carlos, diz, sem hesitar, "era um sinal. Não percebi. Enquanto os outros bebiam duas imperiais eu já ia à terceira. Diziam-me não bebas tanto..."
A bola de neve foi crescendo, girando à sua volta sem sentido e Carlos não se apercebia de nada. Chegou ao ponto de logo de manhã ter de beber álcool para conseguir fazer a barba. São momentos que nunca mais se esquecem e outros que recorda com mágoa. "Até ao nascimento do meu primeiro filho as coisas iam andando. Bebia ao almoço, durante a tarde aguentava-me e à noite não bebia assim tanto". Mas a bebida tomou conta de si, tornou-se arrogante, o tipo de quero, posso e mando. A vida familiar, nestas circunstâncias, nem sempre foi um mar de rosas. Carlos tem dois filhos e afirma que nunca foi violento para eles, no entanto é com mágoa que diz que "os marquei e ainda hoje tento reparar os danos que lhes causei. Na altura, comprava os meus filhos para conseguir estar bem e poder ter liberdade. A minha mulher soube protegê-los de mim, mas há marcas que não se apagam".
Carlos usa uma expressão que define os seus sentimentos: "A minha mulher adoeceu com a doença do marido. Aturar uma peça destas não é fácil". Na parte final do seu alcoolismo Carlos bebia solitário. Ia para casa só para dormir. A sua vida era passada a dois, entre ele e a garrafa e muitas vezes as lágrimas. "Nos últimos tempos do meu alcoolismo já não saía da garagem. Era ali que eu estava, no fundo do poço".
Um dia houve um clique na cabeça do Carlos. Pelas mãos da médica de família entrou nos Alcoólicos Anônimos, onde assistiu a reuniões e partilhou a sua força, a sua experiência com alguém que tem o mesmo problema que ele. O único requisito para ser membro é simplesmente ter o desejo de parar de beber, que depende, única e exclusivamente, da vontade de cada um.

"A água é hoje uma companheira"

Custódio tem um percurso de vida semelhante ao do Carlos. O álcool foi um companheiro inseparável de todos os dias. Beber foi a razão da sua vida. Hoje Carlos consegue reconhecer que teve duas fases no seu alcoolismo. A primeira começou de uma forma social, bebia na companhia dos amigos. Mas a palavra parar não fazia parte do seu vocabulário e bebia cada vez mais. Até que um dia, por motivos de saúde, foi obrigado a deixar a bebida.
Durante seis anos não tocou numa gota de álcool. Custódio recorda: "Um belo dia deram-me ordem para beber um copinho à refeição. Tive uma recaída. Primeiro bebia um copinho de manhã, outro à tarde e rapidamente comecei a beber sem parar". A mulher pedia-lhe para deixar a bebida. O marido prometia que no dia seguinte já não ia beber. Promessas que caiam em saco roto. A sua relação de 30 anos esteve à beira do final. Na primeira vez que entrou nos AA fê-lo pelas mãos da filha e um pouco contra a sua vontade. O vício era mais forte. Não queria parar de beber e inevitavelmente voltou a ser alcoólico... Depois de bater no fundo do poço, abriu os olhos e regressou. É com alegria e com um profundo sentimento de vitória que Custódio afirma: "Já lá vão umas 24 horas sem tocar no primeiro copo".
A questão do tempo fazia confusão a este alcoólico em recuperação. Hoje, aos 62 anos, percebe que a vida que levou não tinha significado. "Fui uma pessoa violenta verbalmente. Fiz muita coisa que não devia ter feito muitos esquemas para beber sem ninguém a chatear-me..." A água é hoje uma companheira inseparável das refeições. "Não gosto muito, mas também bebo sumos. Já não me faz diferença. Hoje vejo a bebedeira dos outros, vejo as figuras que fazia..."
Tanto Carlos como Custódio estão em recuperação há 24 horas. É assim que se mede o tempo da abstinência total. "Só conta o dia de hoje. Passei-o sem beber, é ótimo. Amanhã logo se vê". Os momentos têm de ser vividos aos poucos, porque uma recaída depende apenas de um sentimento, de raiva, de descontentamento, uma frustração, um desgosto. E atualmente, estes homens têm perfeita consciência disso. A linha que os separa do copo de vinho é invisível.
O alcoolismo é uma doença incurável, progressiva. Estas pessoas não estão curadas, simplesmente têm o vício sossegado, adormecido. "Se eu não me meter com ele, ele não vem ter comigo", concluiu o Carlos.
A felicidade é agora um conceito bem diferente na vida destes homens que afirmam: "Depois de conhecer os Alcoólicos Anônimos é que conheci o sentido da palavra felicidade. Hoje sou feliz".

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